Ela desliga o despertador. Quatro e meia da manhã. Não pestaneja. Levanta-se, banha-se, escova os cabelos e os dentes. Nada meticuloso. Sem excessos. Como faz todos os dias. Vai para a cozinha. Acende um cigarro e começa a preparar marmitas e café da manhã.
Enquanto a água está a ferver, ela se dirige ao quarto novamente. Já são dez para as cinco. Cláudio! Acorda! Ele segue o mesmo ritual que ela. Automático. Quase robótico.
Encontram-se novamente na cozinha. O café está pronto e o cheiro toma conta da casa. Nada como um café feito em coador de pano. Ele a beija na testa. Bom dia, filha. Bom dia, amor. Ele senta-se para tomar o café.
− Hoje o dia vai ser uma loucura. O Pedrão se machucou ontem e o Zeca ainda não voltou por causa da apendicite. Vou ter que fazer tudo com os estrupícios do Carlos e do Manguinho. A obra vai atrasar.
− E a dona? Tá no teu pé?
− Claro. Ela quer se mudar este fim de semana... Disse que vai entregar o apartamento antigo. Vamos ver...
− Falta muito?
− Não, pouca coisa, mas demorada, né? Acabamentos, pequenos acertos, limpeza...
− Vai dar tudo certo. Quer que eu vá prá lá quando sair da casa da Don’Ana? Posso te ajudar na limpeza.
− Acho que não vai precisar. A gente se fala mais tarde. Me liga quando sair de lá que eu te aviso se vai precisar ou não, tá?
− Falou.
− Tô indo. Acorda o Bielzinho daqui a pouco prá ele ir prá faculdade. Deixa um dinheirinho prá ele, tá?
Ela se dirige até o marido. O beija na boca. Te amo. Té mais tarde. Sai. Ele acaba o café. Grita:
Gabriel!! Tá na hora! Levanta-se, pega a marmita e a coloca na mochila. Vai até a porta da cozinha e escuta o chuveiro sendo aberto.
− Tô indo! Bom dia.
Sem resposta.
...
Ela está no ônibus. O sol ainda nem se pronunciou e não tem um lugar para sentar. Que bosta de transporte público! Ainda vou ter o meu carrinho e me livrar deste cecê de ônibus... A viagem está apenas começando. São pelo menos duas horas até a casa de Don’Ana. Como eu queria sentar e aproveitar para dormir um pouco! Sem chances. Vai ter que aturar a viagem em pé até o metrô. Lá, talvez, consiga um lugar para sentar.
...
Ele pega o carro que demora a pegar por causa do frio. O material para a obra já foi todo colocado na caçamba no dia anterior. Pensa em chamar o Gabriel para dar uma empurrada e aí o possante resolve pegar. Lei de Murphy... Passa na casa dos estrupícios e se espremem todos na cabine. Mais um dia de luta pela frente...
...
− Don’Ana!
− Diga, Ju.
− A senhora se importa se eu sair um pouquinho mais cedo prá ajudar o Cláudio a terminar uma obra?
− Se você deixar tudo certinho para quando eu chegar... Sem problemas.
− Obrigada, Don’Ana! A senhora é gente boa mesmo! Eu vivo falando isso pro Cláudio. Obrigada.
− De nada. Estou indo. Beijos!
− Vai com Deus, Don’ana!
...
A polícia chega. Uma multidão se ajunta na calçada. Os policiais abrem caminho. O corpo está estendido no chão.
− O que aconteceu?
− Ele estava limpando a janela e se desequilibrou.
− De qual apartamento? Já sabem?
− Era daquele ali. O porteiro disse que é o 701.
− E os donos já apareceram?
− O porteiro disse que o apartamento está em obra e que os moradores só viriam fim de semana.
− Cadê o porteiro?
− Está lá dentro conversando com o síndico.
Os policiais procuram o porteiro. Ele aparece na companhia do síndico.
− Você sabe se ele estava sozinho no apartamento?
− Não, tinha dois ajudantes com ele. Eles saíram correndo. Desesperados. Quando viram o patrão no chão! Começaram a gritar desesperados e correram.
− Eles não tentaram nada? Não chamaram ninguém?
− Não. Eles saíram gritando e chorando!
− Você acha que ele caiu ou pode ter sido jogado?
− Pelos garotos? Nunca. Eu acho que não. A gente conversava muito. Eu tava sempre na obra. Os meninos adoravam o Cláudio. Ele era como um pai para eles.
− ‘Qual’ os nomes e as idades dos garotos?
− Carlinhos e Manguinho. O nome do Manguinho eu não sei... Só chamavam ele assim. Devem ter uns 30 anos...
...
O dia foi puxado. Ela trabalhou dobrado para ter tempo de ir ajudar o marido, mas pensa: Hoje à noite vou fazer um jantar caprichado. Prá mim e prá ele! E depois... Aproveitar que o Biel vai dormir na casa da namorada... Hoje vai ter! Faz movimentos sensuais. Ri alto. Grita “de prazer”. A roupa está lavadinha. A faxina, pronta. A janta, na geladeira para quando Ana voltar. Pega o celular e liga para Cláudio. O telefone toca.
− Alô? Quem está falando? Este telefone é do Cláudio?
...
O telefone toca. O policial mais próximo pega o celular no bolso do morto.
− Caraca, caiu do sétimo andar e ainda funciona? Celularzinho bom... Alô? Se este telefone é do Cláudio?
O policial grita para o outro: Ei, o nome dele era Cláudio? O porteiro grita que sim.
− Era sim senhora! A senhora era o que dele? Esposa. Qual o seu nome? Pois é, minha senhora, eu tenho uma notícia desagradável... Tem alguém com a senhora aí com que eu possa falar? Não? Então...
...
− Cris, há três meses que você está trabalhando aqui. Você teve alguma notícia da Ju?
− Ih, Don’Ana... Coitada, né? Que tragédia. Dizem que ela ficou maluquinha! Lelé da cuca! A Dona Gertrudes, que mora perto da mãe dela – a que cuida do filho dela agora –, disse que nunca mais ‘viram ela’. Outro dia, uma vizinha disse que ‘viu ela’ num orelhão. Maltrapilha. Gritava e gesticulava que nem maluca. Parecia uma ‘mendinga’. Disse que ela brigava com o Cláudio, como se ele estivesse vivo. Falava para ele voltar logo, que tinha feito um jantarzinho para os dois e que à noite “ia ter”, se é que a senhora me entende...
− Meu Deus! Uma pessoa tão boa. Uma família tão boa...
− Pois é! É a vida, na Don’Ana? Um dia aqui, outro na cova...
...
− Cláudio, que horas ‘cê vai chegar, hoje? Não quero saber, Cláudio. Deixa pra terminar amanhã e vai cedo para casa. Cláudio, você não me ama mais? Tá com alguma vagabunda? Seu desgraçado. Tu e aqueles putos dos estrupícios... Foram eles que te levaram para o mau caminho. Sabia que o Manguinho morreu trocando tiros com a polícia?? É! Entrou pro tráfico e se fudeu, aquele filho da puta! O Carlinhos virou pastor e pega dinheiro de todo mundo lá no morro. É igual a traficante, os dois vendem ilusão... Outro filho da puta! Cláudio, eu te quero em casa hoje! Às sete horas em ponto! Volta para mim, amor! Eu te amo! Estou te esperando! Por favor! Seu desgraçado! Eu te amo! Volta pra mim! Volta, Cláudio! Por favor. Eu não sei viver sem você! Eu vou te enfiar a porrada, seu merda. Em você e nesta vagabunda com que m você fugiu... Eu vou matar os dois! Volta, amor. Volta...